A jardinagem é uma homenagem que o homem presta a vida. Não me refiro a questões ecológicas (ou ecochatas), algo como “Grennpeace”, nada disso. Instituições iguais ao Grennpeace são redutos de alguns canalhas da hipocrisia. Ao falar da jardinagem, abordo o cuidado de um ser humano sobre uma planta, inerte, paralítica, mas com vida. Observamos, dessa forma, a vangloriação e o respeito com o ser.
Morreu há alguns dias o britânico Tony Nicklinson, 58 anos. Nicklinson sofria de “síndrome do encarceramento” após ter sofrido um derrame, em 2005, e que travava uma luta legal na justiça pelo direito de ser submetido ao suicídio assistido. Nicklinson não se movia, só se comunicava por piscadelas e dizia que sua vida havia virado um “pesadelo” desde seu derrame, que o deixou totalmente paralisado. Ele lamentava sua vida sob essa condição. Também dizia que estava condenado ao sofrimento crescente e sem fim.
E a corte britânica, claro, não adotou o pedido do enfermo. Na ocasião, um dos juizes do caso afirmou que uma decisão favorável “traria consequências muito além dos casos atuais”. A lei inglesa é bastante clara em casos como esse. A eutanásia é condenável.
E a sua família? Nicklinson era casado e pai de duas filhas. Suas filhas e a esposa concordavam com sua ideia. Lauren, uma de suas filhas, rejeitou o argumento dos críticos da eutanásia afirmando que “a vida não deveria ser avaliada apenas em quantidade, mas em qualidade”, (palavras de Lauren).
Há quem condene a ação da justiça. Há quem congratule a decisão da justiça. Por um lado, para os que condenam, o Estado se mete na decisão particular do individuo sobre sua própria vida. Por outro, para os que apóiam a decisão da justiça, o Estado não deve acatar ideias dessa natureza. Respeito os argumentos de ambos os lados, mas concordo com a sentença proferida pela justiça. O Estado tem o dever de defender uns contra os outros e, também, de defender-nos contra nós mesmos. O suicídio sempre será um ato primitivo.
Não podemos aceitar, em situações análogas, que se estabeleçam precondições para definir vidas que mereçam ser vividas ou que precisam ser interrompidas. Todos nós vivemos inseridos em um código vital. Além disso, este código deve ser minuciosamente reproduzido. Nós, humanos, somos um resultado de teias de afetos e lembranças. Caminhamos diariamente pelas estradas e desvãos da nossa efêmera memória. Tentar entender melhor o código da vida não fará você uma pessoa melhor do que ninguém, mas vai fazer de você um ser humano adulto capaz de compreender melhor a dignidade, a preservação da vida.
O jornalista e escritor, Reinaldo Azevedo, é enfático em seu texto memorável sobre indivíduos enfermos em busca da eutanásia: “Um corpo ainda morno, embora não manifestando nenhum sinal de consciência, nos cobra um entendimento. Até que não se dê o último suspiro, não tem início o luto, e quem o determina é o inelutável”. Reinaldo é sublime em suas palavras.
A vida só nos pertence até certo ponto. Ligações e obrigações são estabelecidas diariamente entre as pessoas. Mesmo que uma vida normal, inusitadamente, se transforme em uma sem sentido, como no caso de nicklinson, ela deixa de ser particular. Passa a ser também medida do que somos e construímos enquanto civilização.
Um corpo em estado vegetativo ainda é um corpo. Assim como uma planta, mesmo imóvel, mesmo em inércia, existe ainda uma vida. Pois devemos cuidá-lo como cuidamos de uma orquídea. O inverso de tudo isso seria um retorno, obscurantista, a idade das pedras. Como sabemos, só as pedras é que não conseguem brotar nenhum sopro de vida.
(KLEBER SANTOS)