Não só do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos vive o STF (Supremo Tribunal Federal). Além de competências mais direta e evidentemente relacionadas à sua função precípua de guarda da Constituição, o STF exerce uma série de atribuições na condição de instância máxima de um dos órgãos do Poder político, por expressa atribuição do próprio texto constitucional. Dentre essas, sobressai a de foro originário para o processamento e julgamento de determinados membros dos demais ramos do Poder, pelo cometimento de condutas tipificadas em lei como crimes comuns, nas situações e condições estabelecidas pela Constituição.
Sob o ponto de vista da competência para o julgamento, a questão se insere dentre as prerrogativas funcionais dos membros do Congresso Nacional. O fato de o investigado ser detentor de mandato eletivo em uma das Casas do Congresso Nacional, e enquanto o for, faz com que incida na espécie o disposto no art. 53, § 1º, da Constituição, segundo o qual, desde a diplomação – isto é, desde o momento em que se certifica formalmente que determinada pessoa foi eleita para o exercício de determinado cargo eletivo, antes mesmo da posse – Deputados Federais e Senadores serão submetidos a julgamento perante o STF. Tendo em vista que sua finalidade é garantir a liberdade necessária para o exercício da função, a prerrogativa de foro atrela-se ao cargo, e não à pessoa do parlamentar.
A prerrogativa, contudo, é restrita à matéria criminal, defluindo a atribuição do STF para tanto do art. 102, I, b, que estabelece sua competência originária para processar e julgar, nas infrações penais comuns, entre outros, os membros do Congresso Nacional. Isso significa, de um lado, que foge à competência do STF o julgamento de feitos relativos a ilícitos que não possuam índole criminal, ainda que envolvam atos de investigação, tais como os de natureza civil, administrativa ou eleitoral extrapenal. De outro lado, significa que quaisquer crimes comuns, inclusive os crimes eleitorais, atraem a competência jurisdicional do STF, que se estende por isso até a supervisão do inquérito respectivo e a ordenação de providências restritivas de direitos necessárias à investigação da prática delituosa, como já assentado na jurisprudência da Corte (por todos, Recl. 4.830-6, Rel. Min. Cezar Peluso).
No que se refere ao mérito do Inq 3.182, ao investigado foi imputada a prática de realização de propaganda de boca de urna no dia da eleição, ato tipificado como crime no art. 39, § 5º, II, da Lei nº 9.504/1997. No crime de boca de urna, o bem jurídico tutelado é a liberdade de escolha do eleitor, o livre exercício do voto. É considerado, pela jurisprudência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), como crime de mera conduta, de forma que sua caracterização independe da obtenção do resultado, que seria o convencimento ou a coação do eleitor (por todos, TSE, HC 669, Rel. Min. Cármen Lúcia). Não se confunde com o crime de captação de sufrágio (art. 41-A da mesma lei), que consiste no oferecimento de promessa ou vantagem pessoal ou material ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto. Nem toda manifestação político-eleitoral, no entanto, é vedada pela lei e, por ser a boca de urna conduta tipificada como crime, entende a jurisprudência do TSE que deve ser interpretada restritivamente.
Esse último aspecto sobressaiu na análise do caso em questão. O Relator asseverou, de início, que as elementares do tipo penal do art. 39, § 5º, II, da Lei nº 9.504/1997 (“arregimentação de eleitor” e “propaganda de boca de urna”) conferem-lhe feições abertas, que devem ser completadas com dados do contexto fático, de modo a possibilitar a aferição, caso a caso, da relevância penal das condutas praticadas. Lançadas essas premissas, concluiu que se estaria, no Inq. 3182, diante de um quadro de atipicidade, já que o denunciado estaria apenas “dialogando com os eleitores em frente a um dos locais de votação”, não havendo em lei proibição à presença de candidato nas proximidades dos locais de votação, ao contrário, já que candidatos devem ser admitidos a fiscalizar a votação, formular protestos e fazer impugnações, podendo mesmo ficar no recinto da mesa de votação (arts. 132 e 140 do Código Eleitoral). Salientou que o que a legislação proíbe é a arregimentação e o aliciamento de eleitores pelos candidatos, e não sua permanência no local de votação ou em suas imediações. “Tenho muita preocupação com a criminalização da atividade política. As eleições constituem uma festa da cidadania, em que os candidatos devem sim circular pela cidade, mostrar o seu rosto e se identificar para os eleitores”, afirmou. Não se deixou de alertar, contudo, especialmente a partir da manifestação da Min. Cármen Lúcia, atual Presidente do TSE, para o fato de que a boca de urna é crime, ainda que não tenha sido caracterizada sua prática no caso em tela.
Foi o entendimento que prevaleceu, ao final, tendo sido rejeitada a denúncia, por ausência de justa causa para abertura de ação penal. Restaram vencidos os Ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, que votaram no sentido de que, no momento, caberia ao STF tão somente pronunciar-se sobre o recebimento ou não da denúncia, sem que se pronunciasse sobre a prática efetiva ou não do crime, sobre o juízo de culpabilidade, e que, diante da existência de indícios claros de materialidade e autoria, deveria a denúncia ser recebida, justamente para se averiguar a conduta imputada ao acusado, na fase de instrução processual.
É interessante observar, pois, que, em situações como esta, em que exerce competência determinada por uma qualidade da função exercida por uma das partes do processo, o STF se debruça sobre fatos concretos (e seus membros dissentem a esse respeito, conforme seu livre convencimento), faz remissão à legislação infraconstitucional, procede à subsunção do fato à norma – todas condutas pouco comumente associadas ao órgão de guarda da Constituição. É de se notar, contudo, que, mesmo no exercício de atribuições outras que não as típicas de controle de constitucionalidade, o STF jamais se despe de sua função maior, incumbindo-lhe sempre fazer valer a Constituição – em especial diante da necessidade de garantia de direitos fundamentais, como aquelas de que se cogita em sede de processo criminal.
FONTE: ultimainstância.com.br